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Story Publication logo March 21, 2024

‘Autoritários’ Episode 5: Bolsonaro and the Armed Forces in Brazil (Portuguese)

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A podcast examines authoritarian leaders around the world.

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An English summary of this report is below. The original report, published in Portuguese in Folha de S.Paulo, follows.


The fifth episode discusses how retired captain Jair Bolsonaro empowered the Brazilian Armed Forces and emboldened advocates of military intervention, culminating in a Federal Police investigation into an alleged coup attempt to keep him in power.


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Autoritários: Como Bolsonaro empoderou militares e tirou golpismo do armário

Podcast narra avanços autoritários do ex-presidente e discute envolvimento das Forças Armadas na política


SÃO PAULO — Na noite de 28 de outubro de 2022, Jair Bolsonaro e Lula se enfrentaram no antes das eleições. Um detalhe na roupa do então presidente chamava a atenção. Na lapela esquerda do terno preto, Bolsonaro usava um broche azul e vermelho. Era uma representação da Medalha do Pacificador com Palma, concedida pelo Exército.

Essa honraria é oferecida a militares que agiram com ato de bravura, ou seja, que colocaram sua vida em risco para salvar outra pessoa. Bolsonaro foi condecorado com a medalha em dezembro de 2018, depois das eleições que venceu e antes da posse.

O repórter da Folha Cezar Feitoza, que cobre as Forças Armadas, diz que aquele foi um ato de comemoração do Exército pela vitória do ex-presidente. "Eles atuaram, sim, nos bastidores para a construção dessa candidatura, para a viabilização do Bolsonaro eleito."

O quinto episódio do podcast Autoritários discute como Jair Bolsonaro empoderou os militares e tirou do armário defensores do golpismo.


O ex-presidente Jair Bolsonaro discursa em ato com apoiadores na avenida Paulista. Imagem por Danilo Verpa. Brasil, 2024.

Em uma das fotos da cerimônia em que Bolsonaro ganhou a medalha aparecia ao fundo o tenente-coronel Mauro Cid, que se tornaria seu ajudante ordens na Presidência. Cinco anos depois, uma delação premiada do militar colocaria o ex-chefe na posição de investigado, sob suspeita de buscar o apoio das Forças Armadaspara dar um golpe.

Professor da Ufscar, João Roberto Martins Filho estuda o militarismo no Brasil há mais de 30 anos. Ele diz que Bolsonaro ativou nos militares uma vontade de poder que estava latente. E afirma que, desde a proclamação da República, não houve nenhum episódio de crise política grave em que o Exército não tenha sido um ator central.

"Nós temos uma longa tradição de o Exército ser parte fundamental do sistema político e de acabar aceitando um papel de que quem resolve os problemas num momento de crise são as Forças Armadas", diz. "A questão é que o Exército não pode fazer esse papel. O Exército não tem nenhuma função no século 21 a desempenhar na ordem política interna."

A série narrativa em áudio da Folha conta em sete episódios o processo de crise democrática que está em curso no mundo. Cada um deles se debruça sobre um líder autoritário contemporâneo: Narendra Modi (Índia), Viktor Orbán (Hungria), Donald Trump (Estados Unidos), Jair Bolsonaro (Brasil), Nayib Bukele (El Salvador) e Daniel Ortega (Nicarágua).

Foram oito meses de pesquisa, seis viagens e dezenas de entrevistas com políticos, pesquisadores, jornalistas, ativistas e, principalmente, cidadãos que têm suas vidas afetadas diretamente pelo autoritarismo.

Apresentação, roteiro, produção e reportagem do Autoritários foram feitos pela repórter Ana Luiza Albuquerque. Há oito anos na Folha, Ana Luiza trabalha na editoria de política e é mestre em jornalismo político pela Universidade Columbia (EUA).

A edição de som do projeto é de Raphael Concli. A coordenação é de Magê Flores e Daniel Castro, a produção no roteiro é de Victor Lacombe e a supervisão é de Gustavo Simon. A identidade visual é de Catarina Pignato.

Os episódios são publicados toda semana, às quintas-feiras. Eles podem ser ouvidos no site da Folha e nas principais plataformas de áudio.

AUTORITÁRIOS
quando quintas-feiras, às 8h
onde nas principais plataformas de podcast

LEIA A TRANSCRIÇÃO DO QUINTO EPISÓDIO

BOLSONARO E AS FORÇAS ARMADAS NO BRASIL

ABERTURA

Jair Bolsonaro: Fala, Lula. Fala, Lula. Vem cá, fala aqui. Vem aqui na minha frente, olha para a minha cara e fala.

Ana Luiza Albuquerque: Na noite de 28 de outubro de 2022, Jair Bolsonaro e Lula se enfrentaram no último debate na TV antes das eleições. O clima entre os candidatos à Presidência espelhava a tensão que se acumulava no país às vésperas do segundo turno.

Jair Bolsonaro: Nós ampliamos, Lula… fica aqui, rapaz.

Lula: Não quero ficar perto de você, não quero ficar perto de você.

Jair Bolsonaro: Fica aqui, Luiz Inácio, fica aqui.

Ana Luiza Albuquerque: No fim de semana anterior, o ex-deputado Roberto Jefferson, apoiador do Bolsonaro, tinha resistido a uma ordem de prisão do Supremo Tribunal Federal e lançado granadas contra policiais federais.

Roberto Jefferson: Eles vão vir forte, e eu não vou me entregar. Não vou, chega. É muita humilhação.

Ana Luiza Albuquerque: E no dia seguinte ao debate, em meio a uma discussão, a deputada federal Carla Zambelli, aliada do Bolsonaro, apontaria uma arma contra um apoiador do Lula. Isso no meio da rua, nos Jardins, bairro rico de São Paulo.

A democracia brasileira estava sob ameaça. Não era uma eleição normal –e nos meses seguintes as coisas só iriam piorar.

Um detalhe na roupa que Bolsonaro usou na noite do debate chamava a atenção. Na lapela esquerda do terno preto, o então presidente usava um broche azul e vermelho. Era uma representação da Medalha do Pacificador com Palma, concedida pelo Exército.

Cezar Feitoza: Essa medalha é uma das medalhas mais raras do Exército.

Ana Luiza Albuquerque: Esse é o repórter da Folha Cezar Feitoza, que cobre as Forças Armadas.

Cezar Feitoza: E ela é dada àqueles militares que agiram com ato de bravura, ou seja, que colocaram sua vida em risco para salvar outra pessoa.

Ana Luiza Albuquerque: Bolsonaro já tinha ostentado o broche nos debates anteriores, em uma entrevista ao Jornal Nacional, em eventos oficiais e em pronunciamentos em cadeia nacional. Basicamente, situações em que ele precisava demonstrar força.

O Exército premiou Bolsonaro com a medalha em dezembro de 2018, depois das eleições que ele venceu e antes da posse.

[reportagem Globo] Segundo o Exército, Jair Bolsonaro foi condecorado por ter impedido o afogamento de um soldado durante uma atividade de instrução militar, em 1978.

Ana Luiza Albuquerque: Celso Luiz, esse soldado, é negro, e o ex-presidente costuma usar essa história para rebater acusações de racismo.

Depois de receber a medalha, Bolsonaro falou com jornalistas, ao lado do Celso.

Jair Bolsonaro: Nós requeremos essa medalha quando começou a avolumar acusações que eu seria racista, e o soldado Celso, todo mundo vê, um afrodescendente. Fui atrás dele e arrisquei minha vida dessa mesma forma. É um ser humano, um soldado do Exército brasileiro. Por instinto até, nós arriscamos nossa vida para salvar a vida de um colega nosso.

Ana Luiza Albuquerque: A cerimônia aconteceu no Quartel General do Exército, em Brasília. Vários generais que depois fariam parte do governo Bolsonaro estavam lá: o então comandante da Força, Eduardo Villas Bôas, Carlos Alberto dos Santos Cruz, Augusto Heleno e Luiz Eduardo Ramos.

Mas por que o Exército concederia uma medalha tão cobiçada a um militar reformado, 40 anos depois do alegado ato de bravura?

Cezar Feitoza: Única explicação para isso, e isso não é uma análise de conjuntura... Não. É, de fato, conversando com os militares. Era um ato de comemoração do Exército à vitória do Bolsonaro. Eles atuaram, sim, nos bastidores para a construção dessa candidatura, para a viabilização do Bolsonaro eleito.

Ana Luiza Albuquerque: O Cezar diz que esse gesto retrata a aproximação perigosa entre Forças Armadas e Poder Executivo, que nos anos seguintes encheria de militares ministérios, estatais e órgãos federais.

Cezar Feitoza: A participação do Exército no apoio e no governo Bolsonaro não ficou limitado, como se tenta fazer crer, a alguns generais da reserva que têm todo o direito de fazer sua participação política. Não. Foi uma participação política do próprio Exército, institucionalmente, que fez com que Bolsonaro se tornasse quem ele é e o governo Bolsonaro se tornasse o que ele foi.

Ana Luiza Albuquerque: Vendo algumas fotos da cerimônia em que Bolsonaro ganhou a medalha, eu notei que ao fundo de uma delas estava também o tenente-coronel Mauro Cid, que se tornaria ajudante de ordens dele na Presidência. Cinco anos depois, uma delação premiada do militar colocaria o ex-chefe na posição de investigado, sob suspeita de buscar o apoio das Forças Armadas para dar um golpe.

Ana Luiza Albuquerque: Eu sou Ana Luiza Albuquerque e esse é o quinto episódio do Autoritários: um podcast da Folha que investiga líderes contemporâneos que ameaçam a democracia e as conexões entre eles. O projeto tem apoio do Pulitzer Center on Crisis Reporting.

Ana Luiza Albuquerque: Você deve se lembrar de como as coisas estavam caóticas no fim de 2022.

Eleitores:

Fazer um protesto, gente!

Bora, bora descer!

Uma blitz desde de manhã. Hoje é dia 30, dia de eleição, Polícia Rodoviária Federal apreendendo moto, carro.

Ana Luiza Albuquerque: A direção da Polícia Rodoviária Federal estava sendo acusada de ter montado blitze em cidades do Nordeste, região onde Lula tem uma br forte, para dificultar a chegada aos locais de votação no segundo turno. Depois da vitória do petista, a corporação demorou mais de um dia para desmobilizar protestos golpistas que bloquearam as estradas do país.

Depois que Lula ganhou as eleições, começaram a se multiplicar acampamentos golpistas em frente aos quartéis.

Bolsonaristas: Intervenção federal! Intervenção federal!

Ana Luiza Albuquerque: Enquanto isso, o PL, partido do Bolsonaro, pedia ao TSE a invalidação de parte dos votos do segundo turno por "mau funcionamento" de algumas urnas, sem apresentar provas de fraude. O ministro Alexandre de Moraes, presidente da corte, negou e ordenou multa de R$ 23 milhões por má-fé.

Em dezembro, apoiadores do ex-presidente vandalizaram Brasília –incendiaram veículos, tentaram invadir a sede da Polícia Federal e atacaram uma delegacia. Na noite do dia 24, um bolsonarista que frequentava o acampamento na capital federal foi preso sob suspeita de ter tentado explodir um caminhão de combustível perto do aeroporto.

[reportagem Globonews] Ele disse que o objetivo, nas palavras dele, era dar início ao caos, e depois, com a instalação desse caos, queria a decretação do estado de sítio.

Ana Luiza Albuquerque: Da derrota até o fim de 2022, Bolsonaro passou a maior parte do tempo em silêncio. Ele demorou 45 horas para se pronunciar depois do segundo turno, e, quando falou, disse que as manifestações eram fruto de indignação e de um sentimento de injustiça em relação ao processo eleitoral.

Mas o ex-presidente estava se movimentando nos bastidores.

Segundo investigação da Polícia Federal que apura se houve tentativa de golpe, Bolsonaro recebeu em novembro de 2022 uma minuta das mãos do ex-assessor Filipe Martins e do advogado Amauri Saad. Até um padre teria participado da elaboração desse documento, como conta o Cezar Feitoza, repórter da Folha.

Cezar Feitoza: É muito bom isso, parece início de piada. O que o Filipe Martins, um padre e um constitucionalista foram fazer no Palácio da Alvorada? Apresentar a minuta de golpe.

Ana Luiza Albuquerque: Essa minuta, de acordo com a PF, decretaria a prisão de diversas autoridades, como os ministros do STF Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes e do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. O decreto também previa a realização de novas eleições.

Os investigadores afirmam que Bolsonaro pediu algumas edições no texto, mantendo a prisão de Moraes e a convocação do novo pleito.

No dia 7 de dezembro de 2022, ele teria apresentado o documento a dois chefes das Forças e ao então ministro da Defesa, buscando o apoio deles. Teriam participado desse encontro o almirante Almir Garnier, que comandava a Marinha, o então chefe do Exército, Freire Gomes, e o general Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro.

Em depoimento à Polícia Federal, Freire Gomes confirmou a reunião. O ex-comandante da Aeronáutica, Carlos Baptista Júnior, também confirmou a participação em encontros de tom golpista com o ex-presidente. Ambos disseram que rejeitaram as investidas de Bolsonaro, e o Baptista Júnior foi além. Ele falou que Freire Gomes ameaçou prender Bolsonaro caso ele tentasse um golpe.

O Cezar diz que essa é uma das versões sobre a reação dos comandantes à sondagem do Bolsonaro.

Cezar Feitoza: Uma das versões coloca o comandante da Marinha como aquele que "Eu aceito. Vamos nessa. Nós temos os fuzileiros navais e conseguimos colocar gente na rua". E o comandante do Exército batendo na mesa e falando "Presidente, se você avançar com isso, eu vou ter que te prender". Essa é uma versão que eu acho muito difícil, porque mesmo depois dessa reunião o comandante do Exército foi diversas vezes ao Palácio. Eu acho que se tivesse tido uma reunião tão tensa assim, acredito que as próximas reuniões não fossem tão amistosas quanto elas foram.

Ana Luiza Albuquerque: Freire Gomes e Baptista Júnior disseram à PF que Garnier foi o único comandante das Forças que se colocou à disposição de Bolsonaro para um golpe. O Mauro Cid falou a mesma coisa em delação. Garnier decidiu ficar em silêncio no depoimento dele.

Segundo a PF, com br em mensagens encontradas no celular do Mauro Cid, o general Estevam Theophilo de Oliveira, então chefe do Comando de Operações Terrestres, também teria concordado em executar as medidas para o golpe, desde que Bolsonaro assinasse o decreto.

Depois da posse do Lula, Garnier se recusou a encontrar José Múcio Monteiro, escolhido pelo presidente para o Ministério da Defesa. Ele também rompeu uma tradição histórica e não participou da passagem de comando da Força.

Cezar Feitoza: A passagem de comando é uma tradição sagrada para eles. E a partir do momento que um comandante decide não ir por questões político-partidárias, isso demonstra fortemente o que ele acreditava. Isso foi bem traumático, bem traumático.

Ana Luiza Albuquerque: Depois que esses trechos da delação do Mauro Cid vieram à tona, colegas que se formaram com o Garnier na Escola Naval divulgaram uma nota criticando o que viram como um processo de fritura dele. Eles sugeriram que o almirante não manifestaria uma posição que não tivesse apoio de toda a Força.

Cezar Feitoza: Por toda a apuração que eu tive nesses últimos tempos, definitivamente não teve apoio do comando da Marinha, do Almirantado, para um golpe. Havia muita gente com uma posição bem firme contra o Lula e o resultado eleitoral, achando que teve fraude. Mas disso, para falar em golpe, acho que é um salto grande.

Ana Luiza Albuquerque: O Cezar lembra que em 24 de novembro, um dia depois da multa que Moraes ordenou contra o PL, Bolsonaro já havia se reunido com os comandantes das Forças Armadas no Palácio da Alvorada.

Cezar Feitoza: Nessa reunião, pelo que eu consegui apurar com muita gente, mais de dezena de pessoas, Bolsonaro falou sobre a possibilidade de uma decretação do artigo 142.

Ana Luiza Albuquerque: O artigo 142 da Constituição define o papel dos militares –a defesa da pátria e a garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem. Ele é mencionado com frequência por bolsonaristas, que distorcem o texto dizendo que ele poderia respaldar uma intervenção militar –o que não é o caso.

Cezar Feitoza: Havia diversas minutas que já circulavam desde antes e continuaram circulando depois disso que previam diversas coisas, desde fechamento do TSE e prisão de ministro, fechar o TSE para recolher documentos e ver se havia algum tipo de fraude para convocação de novas eleições. Enfim, havia as mais loucas teses possíveis colocadas em documentos e isso foi discutido com os comandantes das Forças.

Ana Luiza Albuquerque: Essas minutas foram encontradas em vários lugares. Tipo em um armário na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres e na sala do Bolsonaro na sede do PL em Brasília.

Os advogados do ex-presidente negam que ele tenha tido qualquer envolvimento com a elaboração desses documentos, afirmando que foram eles quem os enviaram para Bolsonaro em outubro de 2023. A defesa diz que as minutas foram anexadas à investigação depois de terem sido encontradas no celular do Mauro Cid, e o ex-presidente queria ficar a par do que estava acontecendo.

Em fevereiro desse ano, após a operação da PF que atingiu aliados e apreendeu o passaporte dele, Bolsonaro convocou uma manifestação na avenida Paulista, em São Paulo. Na ocasião, o ex-presidente rejeitou as acusações de golpe, dizendo que golpe se dá com tanque na rua.

Jair Bolsonaro: Agora o golpe é porque tem uma minuta de um decreto de estado de defesa. Golpe usando a Constituição? Tenham a santa paciência.

Ana Luiza Albuquerque: O Cezar cita alguns motivos que podem ter contribuído para o Alto Comando não ter embarcado num golpe. Primeiro, eles sabiam que na prática aquilo seria inviável –a comunidade internacional já tinha deixado claro que reagiria. Segundo, eles teriam que confiar profundamente no Bolsonaro. E no final do governo, eles já tinham se decepcionado com o ex-presidente.

Cezar Feitoza: Eles veem que o entorno do Bolsonaro é feito por pessoas que não têm capacidade de orientar um presidente da República. Nem capacidade jurídica, técnica, legislativa, nada. Eles vão começando a ficar meio envergonhados assim. E aí muitas vezes eu fui almoçar no QG, tomar um café, e eles falavam 'pô, que vergonha é o Bolsonaro'. É, o Bolsonaro sempre foi isso…

Ana Luiza Albuquerque: Durante os quatro anos de governo Bolsonaro pairou a dúvida se os militares embarcariam numa tentativa de golpe. Essa sombra segue o Brasil desde a ditadura militar, e o ex-presidente tirou essa ameaça do armário.

Cezar Feitoza: Eu acho que o absurdo já está aí. Os caras tiveram que fazer uma análise de conjuntura para chegar a uma conclusão e ter que convencer os seus pares de que não tinha que dar golpe nenhum. Não tem que dar golpe nenhum porque não é função de vocês nada disso. Eles não têm essa visão clara. Eles realmente acreditam que eles têm um poder de intervenção, eles são moderadores, eles são os donos da moral e da ética.

Ana Luiza Albuquerque: A reunião com os comandantes depois da derrota não foi o único momento em que Bolsonaro pediu apoio político das Forças Armadas. Outro momento marcante na relação entre Bolsonaro e os comandantes aconteceu em 2021. Na época, os três chefes do Exército, Marinha e Aeronáutica pediram renúncia conjunta em resposta à demissão do general Fernando Azevedo, que ocupava o Ministério da Defesa. Ele foi removido do cargo por não ceder às pressões do Bolsonaro.

[reportagem TV Cultura] A saída dos chefes das Forças Armadas do governo Bolsonaro é episódio inédito na democracia brasileira e só tem paralelo durante a ditadura.

Ana Luiza Albuquerque: Pouco antes disso, o jornalista Merval Pereira contou na coluna dele no jornal O Globo que Bolsonaro tinha dito a pessoas próximas que queria usar um novo avião da Força Aérea para dar um rasante sobre o prédio do Supremo Tribunal Federal. O objetivo seria assustar os ministros, com quem ele estava irritado. O Cezar diz que os comandantes e o ministro Azevedo foram contrários a essa ideia.

Cezar Feitoza: Acho que essa, inclusive, foi uma das razões pelas quais eles acabaram caindo. Mas o autoritarismo estava na veia ali, sabe? Porque o Estado é meu, eu faço o que eu quiser, sabe? Essa era uma visão muito, muito bolsonarista sobre o poder. E nas Forças, apesar de ter gente que apoiava essas loucuras, tinha gente um pouco mais sensata de: "Olha, não dá para fazer isso".

Ana Luiza Albuquerque: Naquela época, Bolsonaro estava frustrado com a falta de apoio das Forças às decisões dele durante a pandemia da Covid-19.

Cezar Feitoza: Seja em passar um avião, um rasante no Supremo, seja em colocar no tratamento do Exército a cloroquina como um medicamento que vai salvar as pessoas.

Ana Luiza Albuquerque: Essa frustração culminou numa reunião tensa no Ministério da Defesa, antes da demissão do ministro e da saída dos comandantes.

Cezar Feitoza: Uma DRzona, sabe, que foi péssima. Foi péssima, segundo duas pessoas que estavam lá com quem eu conversei. Eles dizendo que o Bolsonaro exigia, meio que aos gritos, que se virassem contra, por exemplo, as PM nos estados, porque estavam prendendo gente que estava nas praias sem uso de máscara, em um momento em que não se podia esse tipo de coisa. Bolsonaro pedia um apoio muito mais firme do que o Exército dava a ele.

Ana Luiza Albuquerque: Jair Bolsonaro nasceu em 1955 na cidade de Glicério, no interior de São Paulo, em uma família de imigrantes italianos. Com 17 anos, ele entrou na Escola Preparatória de Cadetes do Exército e depois foi para a Aman, a Academia Militar das Agulhas Negras, onde se formou em 1977. Ao longo da carreira militar, Bolsonaro chegou a servir como capitão.

Fabio Victor: Bolsonaro sempre foi quase um sindicalista no Exército.

Ana Luiza Albuquerque: Esse é o Fabio Victor, repórter da Folha e autor do livro Poder Camuflado, sobre os militares e a política. Ele diz que Bolsonaro ficou conhecido por defender os direitos dos praças, e que ele era muito rebelde.

Uma reportagem da Folha de 2017 mostrou que na década de 80 superiores do Bolsonaro escreveram em um documento sigiloso que ele tinha "excessiva ambição em realizar-se financeira e economicamente".

Fabio Victor: Ele escreve um artigo na Veja dizendo que o soldo, que o salário da tropa, está muito baixo. Isso leva a uma punição, ele fica preso por 15 dias.

Ana Luiza Albuquerque: Esse artigo foi publicado em 1986. No ano seguinte, Bolsonaro deu uma entrevista polêmica para a revista, na qual falou sobre um plano chamado Beco sem saída.

Fabio Victor: É quando a Veja publica a reportagem que ele tinha um plano para explodir bombas em unidades militares. Ele também menciona que poderia explodir uma adutora, a adutora de Guandu, no Rio de Janeiro, mas na primeira reportagem a Veja não dá nem muito destaque a isso, porque já achava que ele era muito falastrão.

Ana Luiza Albuquerque: O Fabio Victor diz que num primeiro momento o então ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, não acreditou na publicação.

Fabio Victor: Até que a Veja vai e mostra os desenhos, os croquis que o Bolsonaro tinha desenhado para a repórter quando contou essa história. Com as evidências, o Leônidas volta atrás e ele, que tinha ficado do lado do Bolsonaro, muda de lado e passa a defender a expulsão do Bolsonaro.

Ana Luiza Albuquerque: Por causa do artigo e do plano mencionado na entrevista, Bolsonaro foi levado a um Conselho de Justificação, uma espécie de tribunal formado por três coronéis, e acabou condenado.

O superior dele, o coronel Carlos Alfredo Pellegrino, foi ouvido no conselho. Ele disse que Bolsonaro sempre tentou liderar os oficiais subalternos, mas que era rejeitado, nas palavras dele, "tanto em razão do tratamento agressivo dispensado a seus camaradas, como pela falta de lógica, racionalidade e equilíbrio na apresentação de seus argumentos".

Fabio Victor: Muita gente acha que ele foi, mas ele não foi expulso. Porque antes tinha que passar pelo Superior Tribunal Militar e no Superior Tribunal Militar ele consegue se livrar, até porque o Leônidas tinha alguns inimigos lá dentro e o Bolsonaro já tinha feito algumas articulações lá dentro. E o Superior Tribunal Militar acaba transformando o julgamento num ataque à imprensa, à revista Veja, e acaba livrando o Bolsonaro.

Ana Luiza Albuquerque: Apesar de ter sido inocentado pelo Superior Tribunal Militar, Bolsonaro ficou com a imagem queimada na instituição, e hoje é um capitão reformado. O Fabio Victor diz que até meados dos anos 90 ele era persona non grata.

Fabio Victor: E ele passa a ser realmente proibido de entrar em organizações militares. Há circulares, informes relatando isso.

Ana Luiza Albuquerque: Mas Bolsonaro tentava contornar a proibição e entrar nas instalações da Aman.

Fabio Victor: Existe inclusive, uma cena célebre, e foi registrado por fotógrafos da época, em que ele vai para lá panfletar e vai tentar entrar numa formatura de cadetes. Em 92, era o governo Collor. E ele não só é proibido de entrar porque havia ordem expressa para não deixá-lo entrar, como o então ministro do Exército, Carlos Tinoco, manda rebocar o carro do Bolsonaro. E o carro dele, que era um Chevette, é rebocado da frente da Aman. E ele senta no capô e sai desfiando impropérios, sai xingando o Exército, xingando a cúpula do Exército.

Ana Luiza Albuquerque: Nessa época, Bolsonaro já estava na Câmara dos Deputados. Ele tinha se lançado na política em 1988, quando se elegeu vereador no Rio de Janeiro. Em 1991, deixou o cargo para se tornar deputado federal. Na Câmara, Bolsonaro era um parlamentar do baixo clero, sem grande expressão ou influência. Ele foi processado quatro vezes no Conselho de Ética e teve a trajetória marcada por falas como essas aqui.

Jair Bolsonaro: Fica aí Maria do Rosário, fica. Há poucos dias você me chamou de estuprador no Salão Verde e eu falei que não iria estuprar você porque você não merece. Fica aqui para ouvir.

Maioria é uma coisa, minoria é outra. Minoria tem que se calar, se curvar à maioria. Acabou.

Eu não deixaria um filho meu de 5 anos de idade brincar com outro moleque de 5 anos adotado por um casal gay.

Eu sou favorável à tortura, tu sabe disso. E o povo é favorável a isso também.

Pela memória do Coronel Carlos Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff!

Ana Luiza Albuquerque: Depois de ter saído do Exército com a popularidade em baixa, Bolsonaro conseguiu aos poucos recuperar a confiança da instituição. E fez isso priorizando os militares na Câmara. O Fabio Victor diz que ele dedicou muita verba das emendas parlamentares para as Forças Armadas, especialmente para a área da saúde.

Fabio Victor: Então você tinha uma questão de grana, de dinheiro, ele acabou dedicando muito, e tinha uma questão ideológica muito forte. Ele se coloca como o principal porta-voz de um pensamento muito sintonizado com o da cúpula das Forças Armadas, sobretudo no que diz respeito ao golpe militar e à ditadura. Todo ano, dia 1° de Abril e dia 31 de março, ele ia à tribuna para defender o que ele chamava de revolução ou contrarrevolução.

Ana Luiza Albuquerque: Ele lembra que em 2014 Bolsonaro se tornou a principal voz do sentimento militar contra a Comissão Nacional da Verdade, que publicou o relatório final em dezembro daquele ano. E aí, Bolsonaro se aproximou das Forças Armadas ainda mais. A Comissão confirmou que violações de direitos humanos, como tortura e desaparecimentos, eram praticadas de forma sistemática pelo Estado durante a ditadura.

Fabio Victor: O segundo governo Dilma começa com ela sob ataque dos militares que estavam revoltados pelo relatório final da Comissão Nacional da Verdade, embora o relatório não tivesse nenhum caráter punitivo e só apresentasse recomendações. Mas no relatório final aparecem nomes de figuras importantes, por exemplo, parentes de gente muito poderosa naquele momento.

Ana Luiza Albuquerque: Naquele ano, Bolsonaro foi liberado para entrar na Aman e confraternizou nos bastidores com cadetes que estavam se formando. Ele fez um discurso político, que depois ele e os filhos publicaram nas redes sociais.

Jair Bolsonaro: Alguns vão morrer pelo caminho, mas eu estou disposto em 2018, seja o que Deus quiser, tentar jogar para a direita esse país.

Fabio Victor: Anos depois ele passa a dizer que a candidatura dele foi lançada ali naquele momento, que aquilo foi a centelha da candidatura dele. Vejam, a candidatura que é lançada dentro da principal escola de formação de oficiais do Exército Brasileiro, da Aman, da Academia Militar das Agulhas Negras. É absurdo isso, mas o Bolsonaro usa isso em favor dele e em favor dessa união para mostrar: eu não só estou reabilitado como minha candidatura foi lançada dentro da Aman.

Ana Luiza Albuquerque: Apesar de ter sido deputado federal por 28 anos, e também ter colocado três filhos na política, em 2018 Bolsonaro se apresentou ao eleitor como um candidato antissistema, que iria mudar "tudo isso que está aí".

Naquele pleito, ele usou a retórica populista do nós contra eles, que se repetiria durante o governo e na campanha de 2022.

Jair Bolsonaro: Agora venceremos também, porque é uma luta do bem contra o mal, e o bem sempre venceu.

Ana Luiza Albuquerque: Em 2018, competindo contra o petista Fernando Haddad, Bolsonaro se aproveitou de um sentimento de desesperança e rejeição à política que dominava boa parte da sociedade depois da Operação Lava Jato. Um levantamento do Datafolha mostrou que entre 2012 e 2018 aumentou a desconfiança da população em relação à Presidência, ao Congresso e ao STF.

Fábio de Sá e Silva: A literatura já aponta um pouco que operações anticorrupção elas trazem esse risco de descredibilização da política e de abertura de espaço para outsiders.

Ana Luiza Albuquerque: Esse é o Fábio de Sá e Silva, advogado e professor de Estudos Internacionais na Universidade de Oklahoma, nos Estados Unidos. Ele diz que o mesmo aconteceu na Itália nos anos 90, depois da operação Mãos Limpas, que foi referência para a Lava Jato.

E que, no Brasil, a retórica anticorrupção já tinha sido usada no passado para legitimar experiências autoritárias, como na ditadura militar.

Fábio de Sá e Silva: Historicamente, essa ideia de colocar a corrupção como uma grande ameaça existencial à nação e se vender como aquele que vai defender a nação dessa ameaça, é muito comum da parte de políticos populistas à direita ou à esquerda. Mas na experiência da América Latina, muito comum ser à direita.

Ana Luiza Albuquerque: A socióloga Esther Solano, professora da Unifesp, concorda que p sentimento antipolítica estimulado pelos métodos da Lava Jato ajudou na ascensão do Bolsonaro. Se o Estado e a política eram corruptos, era preciso eleger alguém de fora –ou pelo menos que parecesse ou se vendesse assim.

Esther Solano: Qual que foi o legado pedagógico da Lava Jato? Não é que um ou outro político são corruptos, é que o sistema como um todo, a política e o Estado, são intrínseca e naturalmente corruptos. Então, derivando da Lava Jato, você tem a necessidade de um outsider, daquele que vem de fora.

Ana Luiza Albuquerque: Em 2018, eu era repórter da Folha em Curitiba e cobria a operação. Em abril, alguns dias antes de Lula ser preso, rolou um protesto em frente à Justiça Federal contra um habeas corpus preventivo que a defesa do petista tinha ingressado no Supremo.

Eu lembro de ter ficado impressionada com o clima de ódio. Um dos manifestantes arrastava um boneco que tinha uma bola de presidiário presa aos pés por uma corrente. O boneco não tinha um dos dedos da mão e estava carregando uma cerveja. Eu perguntei para o homem o que ele estava fazendo, e ele respondeu que estava levando o Lula para o cemitério. Logo depois, uma idosa se ajoelhou e colocou as mãos no pescoço do boneco, imitando um estrangulamento.

A Esther Solano acredita que o ódio foi um dos sentimentos que encontraram vazão com o Bolsonaro.

Esther Solano: Não vamos esquecer aqui que o Bolsonaro ele representa muito também uma questão desse trabalho afetivo emocional né, o ressentimento, a ira, a frustração.

Ana Luiza Albuquerque: Eu perguntei para ela de onde vinha esse ódio.

Esther Solano: Quando a gente pensa o ódio como força motora também desse bolsonarismo mais radical, não tem como dissociar o ódio do processo histórico da formação social brasileira.

Ana Luiza Albuquerque: Ela diz que a gente não trabalhou direito como sociedade questões que deixaram grandes marcas, como a escravidão e a ditadura militar, e que o ódio relacionado a esses processos voltou a emergir.

Esther Solano: A gente não foi capaz tampouco de fazer uma transição democrática, uma luta pela memória histórica sobre a ditadura, sobre o que foi a ditadura. Acho que esses legados históricos que não foram trabalhados do ponto de vista democrático, que a gente não conseguiu consensos político-sociais-democráticos sobre eles, emergem o tempo todo.

Jair Bolsonaro: Eu deixei o Exército em 1988, mas o Exército não me deixou.

Ana Luiza Albuquerque: Bolsonaro deu várias mostras do autoritarismo dele na Presidência. A mais óbvia envolveu a proximidade com as Forças Armadas, e as sucessivas mensagens de que os militares são responsáveis por manter a liberdade, a democracia e a ordem no país.

Jair Bolsonaro: Contem com as Forças Armadas pela democracia e pela liberdade.

O meu Exército brasileiro não vai às ruas para agir contra o povo.

Nós temos o povo ao nosso lado, nós temos as Forças Armadas ao lado do povo, pela lei, pela ordem, pela democracia e pela liberdade.

João Roberto Martins Filho: Não foi o Bolsonaro numa via única que trouxe eles para a política. Eles entraram com bastante ímpeto na candidatura do Bolsonaro três anos ou quatro anos antes da eleição de 2018.

Ana Luiza Albuquerque: João Roberto Martins Filho é professor da Ufscar e estuda o militarismo no Brasil há mais de 30 anos. Ele diz que o Bolsonaro ativou nos militares uma vontade de poder que sempre esteve ali, meio latente.

João Roberto Martins Filho: Juntou a fome com a vontade de comer. O Bolsonaro precisaria aparecer como aquele homem que veio do Exército. E os militares, do meu ponto de vista, eles acharam que poderiam controlar o Bolsonaro.

Ana Luiza Albuquerque: Mas por que os militares sempre estiveram mergulhados na política? O João explica que isso vem lá de trás, desde a época do Império. Ele diz que o Exército teve um papel central na construção do estado nacional brasileiro, no século 19.

João Roberto Martins Filho: Era um projeto do Brasil se fazer respeitado lá fora, quer dizer, do Brasil integrar o Conselho das Nações. Mas para isso era necessário impedir qualquer movimento local, regional e de separação. E é só a gente pensar um pouco que você vai ver que nesse projeto o Exército entra como força central.

Ana Luiza Albuquerque: O João diz que o Exército ganhou muito poder com a Guerra do Paraguai, e começou a entrar em conflito com o imperador, Dom Pedro 2°. Essa briga acabou com o Exército proclamando a República, em 1889, com o marechal Deodoro da Fonseca.

João Roberto Martins Filho: Desde então, você não tem nenhum episódio de crise política grave no Brasil que o Exército não seja uma figura central.

Nós temos uma longa tradição, que de certa maneira, existe nos países da América Latina em geral, de o Exército ser parte fundamental do sistema político e de o Exército acabar aceitando um papel de que quem resolve os problemas num momento de crise, é a Força Armada.

Ana Luiza Albuquerque: Para o João, de todos os presidentes desde a redemocratização, só Fernando Collor fez uma tentativa de enfrentar esse problema, que não foi bem sucedida. Os outros não toparam encarar a questão.

João Roberto Martins Filho: A questão militar é que o Exército não pode fazer esse papel. O Exército não tem nenhuma função no século 21 a desempenhar na ordem política interna. Esse era o papel que o Exército tinha desde lá do Império. Era manter a ordem, reprimir as revoltas e as rebeliões populares.

Ana Luiza Albuquerque: O problema, varrido para baixo do tapete, voltou a ganhar contornos urgentes com Bolsonaro. E o João entende que, no terceiro mandato, Lula, mais uma vez, escolheu uma política conciliatória para lidar com os militares.

João Roberto Martins Filho: Então, nós estamos numa situação em que os militares ainda são o fiel da balança.

Ana Luiza Albuquerque: Ele acredita que, como a questão não é encarada de frente, punindo aqueles envolvidos em aventuras golpistas, tem um risco grande de a situação se repetir no futuro.

João Roberto Martins Filho: Eu acredito que hoje em dia o maior problema que o Brasil tem para consolidar a democracia é esse histórico de intervenção militar nos momentos de crise.

Ana Luiza Albuquerque: O João menciona algumas ações que deveriam ser tomadas para superar essa sombra. Ele diz que é preciso fortalecer e desmilitarizar o Ministério da Defesa…

João Roberto Martins Filho: Fazer com que efetivamente o Ministério da Defesa fosse uma correia de transmissão do poder do presidente civil para as Forças Armadas.

Ana Luiza Albuquerque:…discutir com a sociedade qual a verdadeira função dos militares…

João Roberto Martins Filho: Por que um país como o Brasil precisa de Forças Armadas? E nós vamos chegar, talvez, à conclusão de que precise. Mas então, essa é a função das Forças Armadas: fortalecer o país no cenário externo.

Ana Luiza Albuquerque:…alterar o artigo 142 da Constituição…

João Roberto Martins Filho: É muito ambíguo e faz se desenvolver essa ideia de que os militares têm na Constituição garantido seu poder moderador, quando isso não existe. Não era essa a intenção dos que fizeram a Constituição em 1988. Era afastar os militares do poder.

Ana Luiza Albuquerque:…e punir os militares envolvidos no 8 de janeiro.

João Roberto Martins Filho: A lógica do poder civil no Brasil é não mexer com os militares, porque isso daí não dá voto e só dá problema. Mas fato é que o Brasil está vivendo sob uma espada de Dâmocles, que nós achávamos que já não estava mais presente. E a qualquer momento você pode ter um desrespeito dos militares com relação ao poder civil.

Ana Luiza Albuquerque: Além de ter trazido os militares de volta para a cena política, Bolsonaro deu outras mostras de autoritarismo. Os ataques frequentes ao processo eleitoral, sem qualquer prova ou indício de irregularidade, levaram o ex-presidente a ser incluído pelo ministro Alexandre de Moraes no inquérito das fake news, aberto no STF. O governo chegou a trabalhar pela aprovação de uma proposta que previa o registro impresso do voto nas urnas eletrônicas, mas ela foi rejeitada pelo Congresso em agosto de 2021.

No dia da votação dessa PEC, a Marinha fez um desfile inédito de blindados, caminhões e jipes, que passaram ao lado da Praça dos Três Poderes, em Brasília. Um militar desceu de um dos jipes, subiu a rampa do Planalto e entregou ao Bolsonaro um convite para comparecer a um exercício militar.

Não faltou quem visse no evento uma tentativa de intimidar o Congresso. Mas para o idealizador do desfile, o comandante da Marinha Almir Garnier, aquele que segundo o Mauro Cid toparia o plano de golpe, não foi essa a intenção…

Almir Garnier: Foi uma coincidência de datas que nós não tínhamos como prever. Então talvez isso é que tenha criado um pouco de ruído. Porque no final das contas as Forças Armadas são extremamente cumpridoras da lei e da ordem.

Ana Luiza Albuquerque: O autoritarismo do Bolsonaro também ficou evidente nos ataques à imprensa e aos demais Poderes quando contrariado.

Jair Bolsonaro: Sai, Alexandre de Moraes! Deixa de ser canalha!

Ana Luiza Albuquerque: Tipo nesse discurso no 7 de setembro de 2021, na avenida Paulista. A data foi usada por ele para insuflar os apoiadores a irem às ruas e Bolsonaro deu algumas declarações que acenderam o alerta para a possibilidade de medidas radicais naquele feriado.

Jair Bolsonaro: Nunca outra oportunidade para o povo brasileiro foi tão importante ou será importante quanto esse nosso próximo 7 de Setembro.

Ana Luiza Albuquerque: Mas as demonstrações autoritárias nem sempre foram ostensivas assim. O professor Oscar Vilhena, diretor da Escola de Direito da FGV São Paulo, é coautor de um livro que fala sobre como Bolsonaro usou decretos presidenciais e nomeações para suprimir direitos garantidos pela Constituição sem precisar de aval do Congresso.

Outros líderes autoritários, como o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán, conseguiram maioria no Parlamento para mudar a Constituição. Vilhena diz que, no caso brasileiro, o modelo do presidencialismo de coalizão se consolidou com o presidente compondo maiorias legislativas com setores que eram contrários a ele –o que Bolsonaro não conseguiu fazer a ponto de aprovar tudo o que gostaria. Por isso, ele tentou uma alternativa, que o professor chama de infralegalismo autoritário.

Oscar Vilhena: Se ele não pode mudar a legislação sobre armamentos, que era uma coisa muito forte para ele, muito importante na sua campanha, ele não tem essa maioria suficiente no Congresso, ele começa a solapar a legislação de armamentos por intermédio de decretos.

Ana Luiza Albuquerque: Segundo um levantamento do Vilhena, em quatro anos Bolsonaro editou mais decretos do que os antecessores que ficaram no cargo por dois mandatos, como Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma Rousseff.

Oscar Vilhena: O presidente Bolsonaro foi aquele que mais empregou decretos e numa proporção muito distinta dos outros presidentes. Segundo, ele é o presidente que teve mais derrubada de veto. Então, todas as métricas que você pode ter sobre o relacionamento do presidente com o Congresso, ele é o presidente mais fraco.

Ana Luiza Albuquerque: Ele diz que a natureza dos decretos do Bolsonaro também foi diferente. A função desse dispositivo é regulamentar e complementar as leis –não criar novas ou contrariar as que já existem.

Oscar Vilhena: A nossa percepção é que ele também faz muitos decretos contrários à lei. Não é só que ele faz decretos, ele faz decretos buscando neutralizar a lei, impedir o funcionamento da lei. Isso é que impulsionou o papel do Supremo Tribunal Federal. Porque quando você vê um decreto de armas que está em absoluta dissonância com o Estatuto do Desarmamento, você vai reclamar. Um partido político, uma ONG, vai falar "Olha, pera aí, mas tem um decreto aqui que é um decreto ilegal".

Ana Luiza Albuquerque: Segundo o Vilhena, as áreas mais atingidas pelos decretos do Bolsonaro foram: meio ambiente, especialmente a questão indígena, segurança pública e armamentos, educação e saúde, com a pandemia da Covid-19.

Ele diz que o então presidente também usou nomeações em órgãos públicos para contornar a Constituição.

Oscar Vilhena: Então você nomeia para comandar o Ibama uma personagem que é contrária à ideia de proteção do meio ambiente. E você diz: No meu governo, nenhuma máquina será mais queimada ou destruída porque foi flagrada desmatando. Então aquela pessoa que está coordenando o Ibama no interior do Pará, ela entende que quando há uma situação onde são flagrados pessoas desmatando, ele não vai cumprir a legislação que determina que aquelas máquinas sejam eliminadas, queimadas, obstruídas.

Ana Luiza Albuquerque: Ou seja, a questão aqui não é Bolsonaro ser conservador –querer liberar as armas ou relaxar as políticas de combate ao desmatamento. É a maneira antidemocrática pela qual ele fez isso.

Oscar Vilhena: Quando eu me esquivo do debate democrático, eu faço isso driblando o Congresso Nacional, porque eu faço através de decreto, eu estou, de certa forma, impondo conduta sem a autorização do Congresso. Isso é, em si, antidemocrático. Então, o que a gente viu no governo Bolsonaro foi um emprego não errático disso, mas o emprego sistemático. Essa foi a forma de governo.

Ana Luiza Albuquerque: O governo também usou a legislação de outra forma problemática. Antes de ser indicado para o Supremo, o então ministro da Justiça André Mendonça pediu que a Polícia Federal investigasse críticos de Bolsonaro com br na Lei de Segurança Nacional, criada na ditadura.

Foi o caso do advogado Marcelo Feller, que participou brevemente do programa O Grande Debate, da CNN, no qual dois convidados debatem um tema específico. No dia 13 de julho de 2020, o Feller debateu com o comentarista Caio Coppola se os militares deveriam se envolver na política.

Dois dias antes, o ministro do STF Gilmar Mendes tinha dito que o Exército estava se associando a um genocídio, em meio à pandemia.

Antes de entrar no ar, o Feller encontrou um estudo da Universidade Cambridge que apontava que os discursos do Bolsonaro estavam associados à redução do distanciamento social nos lugares onde a br dele era forte. Aí ele falou isso aqui:

Marcelo Feller: De acordo com o estudo, isso não é opinião minha, Jair Bolsonaro é diretamente responsável por 10% das mortes. Se já ultrapassamos o tristíssimo marco de 70 mil mortes, a postura de Jair Bolsonaro seria responsável diretamente por pelo menos 7.000 mortes.

Ana Luiza Albuquerque: O Feller disse também que não era possível acusar juridicamente Bolsonaro de genocídio, mas completou:

Marcelo Feller: Mas social e politicamente, como chamar alguém que é diretamente responsável por pelo menos 7.000 mortes?

Ana Luiza Albuquerque: O Coppola reagiu e eles discutiram. Logo a cena se espalhou nas redes sociais.

Caio Coppola: Olha o que você falou, não é um genocídio, é só um assassinato em massa por negligência. Marcelo Feller: Exatamente, exatamente. Obrigado.
Caio Coppola: Pelo amor de Deus, então você tá acusando o presidente da República em rede nacional…

Ana Luiza Albuquerque: O Feller diz que depois disso começou a receber xingamentos e ameaças.

Marcelo Feller: Eu me lembro de algumas coisas muito violentas assim, tipo 'Estou vendo aqui que você é defensor de bandido, tomara que um dia um filho seu morra'. Sabe, umas coisas assim muito violentas.

Ana Luiza Albuquerque: Quando eu conversei com ele para o podcast, o Feller me contou que um dia estava sentado na mesa de jantar e a secretária dele mandou uma mensagem, avisando que uma escrevente da Polícia Federal em Brasília tinha ligado para o escritório para agendar um depoimento.

Marcelo Feller: Eu liguei para essa escrivã. ‘Ô, fulana, aqui é Marcelo Feller, você ligou no meu escritório’. ‘Ô, doutor, liguei’. ‘Você quer marcar um depoimento? Não estou lembrado de algum cliente que tenha algum caso na Polícia Federal de Brasília. Você consegue por telefone me situar, quem que eu defendo?' Ela falou ‘Não, doutor, é o seu depoimento’.

Ana Luiza Albuquerque: O Feller ficou atordoado e disse que não falaria sem orientação de um advogado. O Alberto Toron, um criminalista conhecido, assumiu a defesa dele. O Feller lembra de ter sentido medo de como aquilo poderia se desenrolar.

Marcelo Feller: É muito louco como a gente, tão acostumado a lidar com outras pessoas que têm problemas criminais, e de repente me ver nessa posição de investigado. É uma coisa muito… Não vou dizer sofrida, mas muito violenta, eu diria.

Ana Luiza Albuquerque: Ele não achava que seria preso, mas se preocupava com como o caso poderia afetar a imagem dele.

O advogado do Feller perguntou se poderia divulgar o caso. Ele pediu para pensar, mas topou. E aí recebeu um monte de mensagens de solidariedade, de colegas que diziam que aquilo era um abuso.

Marcelo Feller: Então acho que esse esse componente tinha, né? Não sei se era do Bolsonaro, se era da equipe dele, do grupo dele, mas é um componente de ‘Oh, a gente vai para cima’. E isso, evidentemente, cala as pessoas. Ainda mais gente que não tem dinheiro para pagar um advogado, gente que sequer sabe o que fazer.

Ana Luiza Albuquerque: Meses depois, a Justiça reconheceu que o Feller estava exercendo a liberdade de expressão naquele programa da CNN e suspendeu o inquérito. O Ministério Público já tinha pedido o arquivamento, dizendo que a Lei de Segurança Nacional não poderia ser usada para constranger ou perseguir opositores. Em 2021, essa legislação foi revogada pelo Senado com a sanção do próprio Bolsonaro, e os crimes políticos passaram a compor o Código Penal.

O uso de decretos e a tentativa de calar críticos fizeram parte da estratégia autoritária do Bolsonaro no governo. Mas teve mais. Pouco antes das eleições de 2022, ele insinuou que se fosse reeleito poderia seguir outra tática autoritária, usada na ditadura militar e por líderes como o Orbán. Ele disse que tinha recebido propostas para aumentar o número de ministros do STF de 11 para 16, e que discutiria isso depois das eleições. É o presidente quem faz as indicações à corte, que depois passam pela avaliação do Senado.

Em 2021, deputados bolsonaristas já tinham desarquivado uma proposta de emenda à constituição parecida na Câmara, mas ela não passou da fase de discussão. A fala do Bolsonaro gerou reações negativas e alguns dias depois ele baixou o tom.

Jair Bolsonaro: Eu não quero afrontar ninguém, apresentar uma proposta aí que vai deixar chateado o outro poder. Essa não é a ideia nossa.

Ana Luiza Albuquerque: E em janeiro desse ano, outro escândalo ganhou força, o da chamada Abin Paralela: o governo Bolsonaro teria usado um programa espião para monitorar ilegalmente adversários políticos e ministros do STF. A Polícia Federal diz que oficiais da Abin, a Agência Brasileira de Inteligência, produziram relatórios por meio desse software sem qualquer controle judicial ou do Ministério Público.

Gustavo Bebianno, que foi ministro de Bolsonaro e morreu em 2020, já tinha citado em uma entrevista ao programa Roda Viva que Carlos Bolsonaro estaria envolvido na construção de uma Abin paralela.

Gustavo Bebianno: Um belo dia, o Carlos me aparece com um nome de um delegado federal e de três agentes, que seriam uma Abin paralela porque ele não confiava na Abin.

O deputado federal Alexandre Ramagem, ex-diretor da agência, foi alvo de um mandado de busca e apreensão na operação deflagrada pela PF. O vereador Carlos Bolsonaro também. Na fase que mirou Carlos, a PF informou que o objetivo era avançar sobre o núcleo político, para identificar quem tinha recebido as informações produzidas ilegalmente pela Abin.

O governo Lula promoveu uma reestruturação da agência e desmontou o setor que teria utilizado o software espião.

Ana Luiza Albuquerque: Bolsonaro perdeu as eleições de 2022 para Lula e em junho do ano passado foi declarado inelegível pelo TSE, depois de mentiras e ataques ao processo eleitoral. Mas isso não significa que o bolsonarismo esteja morto.

Depois da derrota, Bolsonaro ficou recluso no Alvorada e viajou pros Estados Unidos no fim de 2022 para não ter que passar a faixa para o Lula. Ele ficou na Flórida por três meses, e essa ausência deixou a br dele bem perdida.

Depois de algum tempo longe das ruas, bolsonaristas fizeram um ato na avenida Paulista, em novembro do ano passado, em homenagem a um réu do 8 de janeiro que morreu no Complexo Penitenciário da Papuda. Não faltaram ataques ao STF e ao presidente Lula.

Apresentador: Fora, Alexandre de Moraes! Nós não vamos nos intimidar!

Ana Luiza Albuquerque: A socióloga Esther Solano, que falou antes no episódio, diz que tem questões que não foram bem trabalhadas pelo campo democrático, e que elas podem voltar a ser capitalizadas pela extrema-direita no futuro. Isso porque os temas que mexem com os apoiadores do Bolsonaro seguem os mesmos e eles continuam organizados no ecossistema digital.

Esther Solano: Como por exemplo, a questão da antipolítica, está muito forte. E depois, claro, algumas demandas não atendidas como, por exemplo, o tema da segurança pública, que o governo Lula não está atendendo de fato e que foram também prioritários para a gente entender o ascenso do bolsonarismo.

Ana Luiza Albuquerque: A atuação do STF também é um tema prioritário para os apoiadores do Bolsonaro. A Esther diz que isso ficou ainda mais em evidência depois dos embates recentes entre a Corte e o Congresso. Em novembro, o Senado aprovou uma PEC para limitar decisões individuais dos ministros —a Câmara ainda não analisou a proposta.

Esther Solano: Esse tipo de questão é muito mobilizadora do campo bolsonarista mais radical, mas também, de fato, toca nos mais moderados, porque o STF virou um certo exemplo de vilão de toda essa história.

Ana Luiza Albuquerque: Ela cita algumas figuras que podem capitanear a br bolsonarista que ficou órfã de liderança com a inelegibilidade do Bolsonaro –uma delas é o deputado federal Nikolas Ferreira, do PL de Minas Gerais.

Nikolas Ferreira: Sabe aquela mancha de sujeira que não sai? Eu não estou falando de quando você sujou a sua roupa com sangue, vinho, shoyu ou café. É pior, muito mais difícil de tirar. É a esquerda no poder.

Ana Luiza Albuquerque: A Esther diz que ele tem uma capacidade grande de organizar e comunicar as narrativas do campo conservador.

Esther Solano: Depois, ele é muito jovem, então acho que tem ainda uma trajetória política pela frente. E ele tem um potencial comunicativo que, enfim, que a gente vê de fato, que chega não só nos radicais, mas que ele consegue também furar a bolha dos radicais, e chegar também nos moderados.

Ana Luiza Albuquerque: Ela também menciona Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo e ex-ministro do Bolsonaro, como alguém que vai bem com o eleitor conservador que não é tão radical.

Esther Solano: Porque ele consegue justamente essa equação entre valores que são mais conservadores, então ele tem toda essa lógica conservadora…

Tarcísio de Freitas: A gente tem que cultuar a liberdade. O brasileiro tem que ter a liberdade de escolher, por exemplo, se vai andar armado ou não vai andar armado.

Esther Solano: ...mas sem a radicalidade mais estridente, mais folclórica de outros líderes bolsonaristas, mais caricatos às vezes.

Ana Luiza Albuquerque: E a Michelle Bolsonaro, mulher do ex-presidente, também poderia aglutinar esses eleitores –ou eleitoras.

Michelle Bolsonaro: A nossa política é diferenciada. A nossa política é feminina e não feminista. Nós não estamos aqui… Nós amamos vocês, homens.

Esther Solano: Ela continua tendo um papel muito importante, que é de organizadora também dessa agenda do feminino, de gênero e de organizadora desse público. Então, eu acho que ela tem um papel realmente simbólico muito importante, e eu insisto muito que o público feminino é o alvo dos próximos anos.

Ana Luiza Albuquerque: Eu perguntei para a Esther o que mudou no Brasil depois do Bolsonaro, e ela diz que ele acelerou processos de degradação das instituições.

A Esther também fala que na última década muitas pessoas se politizaram e a extrema-direita conseguiu conquistar esse grupo.

Tem dois fatores que deixam a socióloga preocupada com o futuro. Primeiro, ela conta que fez uma série de pesquisas com bolsonaristas menos radicais sobre como eles enxergaram o 8 de janeiro. Nos questionários da Esther, esse grupo é formado por quem apoia o Bolsonaro, mas também faz críticas ao governo dele. A conclusão foi que essas pessoas não reconheceram aqueles atos como uma ameaça grave à democracia.

Esther Solano: Foi muito mais percebido pelo lado do exagero, do vandalismo, da depredação, da violência.

Ana Luiza Albuquerque: A Esther também se preocupa que os jovens que viveram o governo Bolsonaro normalizem essas ameaças e não entendam a importância de preservar valores democráticos.

Esther Solano: Porque uma juventude que viu um presidente dizer e fazer coisas que nós talvez não imaginaríamos nunca, foi uma juventude que viu pessoas entrando no palácio presidencial tentando dar um golpe, só que não entendendo como uma tentativa de golpe, foi basicamente vandalismo. Então, acho que esses símbolos que a juventude viu, presenciou e entendeu que… bom, que eram possíveis, me preocupa muito.

Ana Luiza Albuquerque: Em outubro do ano passado, a comissão criada no Congresso para investigar o 8 de janeiro aprovou um relatório final depois de cinco meses de investigações.

Quero proclamar o resultado: 20 votos sim, 11 votos não, uma abstenção. Está aprovado o relatório da senadora Eliziane Gama.

Ana Luiza Albuquerque: Eu encontrei a senadora Eliziane no gabinete dela em Brasília, e ela lembrou do cenário depois da invasão.

Eliziane Gama: Eles defecaram nos móveis do STF. Quando eu cheguei, um dia depois, foi um cenário, assim, devastador. Eu chorei quando eu entrei aqui no Senado Federal.

Ana Luiza Albuquerque: Eu perguntei se ela achava que a gente tinha chegado perto de um rompimento democrático depois das eleições.

Eliziane Gama: Eu acho que nós chegamos muito próximos, infelizmente. Nós não acompanhamos esse cenário drástico para o Brasil graças ao fortalecimento das instituições brasileiras, graças ao apoio da própria sociedade brasileira. Porque se pensou claramente o golpe no Brasil, se projetou e se articulou até um golpe.

Ana Luiza Albuquerque: A CPMI sugeriu o indiciamento de 61 pessoas, entre elas o próprio Bolsonaro, que foi tratado como o autor intelectual do ataque.

[reportagem Globo] Segundo o relatório, o ex-presidente Jair Bolsonaro, do PL, deve ser responsabilizado pelos crimes de violência política, associação criminosa, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado.

Ana Luiza Albuquerque: A comissão não tem poder para punir. O conteúdo das investigações foi encaminhado para a Procuradoria-Geral da República, órgão responsável pelas denúncias envolvendo a invasão.

A senadora Eliziane defende que o ex-presidente foi diretamente responsável pelo 8 de janeiro.

Eliziane Gama: Quando esta figura, que é o maior formador de opinião do Brasil, ele coloca de uma forma muito clara a vulnerabilidade de uma urna sem mostrar provas, quando ele não respeita as instituições colocadas, quando ele cria toda essa situação, automaticamente o resultado lá na ponta é uma insegurança, é um clima de comoção.

Ana Luiza Albuquerque: Dos 61 indiciados pela CPMI, 22 são militares –entre eles o almirante Almir Garnier, ex-comandante da Marinha.

Eliziane Gama: Se a instituição Força Armada tivesse aderido a essa ideia eu não estaria hoje conversando com você, a gente teria um golpe no Brasil, mas a instituição em si, ela não aderiu. Teve pessoas da instituição que aderiram, pessoas que tentaram na verdade implementar. Então, o que a gente precisa fazer? A gente precisa retirar essas pessoas e responsabilizá-las até para proteger a instituição, até para não deixar chaga na instituição.

Ana Luiza Albuquerque: Poucos dias depois da invasão, a pedido da PGR, o STF incluiu Bolsonaro no inquérito que apura a instigação e a autoria intelectual dos ataques. A Procuradoria disse que o ex-presidente se envolveu em campanhas de desinformação e contribuiu para que a confiança da população na "integridade cívica brasileira" fosse minada.

O advogado criminalista Gustavo Badaró, professor da USP, explica a figura do autor intelectual.

Gustavo Badaró: É aquele que não realiza diretamente a conduta prevista na lei como crime. Mas ele tem um poder de mando que pode determinar aquela conduta e inclusive paralisar quando quiser. Vou te dar um exemplo: pense no Pablo Escobar. Era lógico que não era ele que estava pilotando o aviãozinho para mandar droga para os Estados Unidos. Não era ele que estava na fazenda plantando a droga. Mas ele era considerado um autor intelectual. Por quê? Porque ele tinha esse poder de mando sobre as outras pessoas.

Ana Luiza Albuquerque: O Badaró acredita que uma eventual denúncia da PGR contra o ex-presidente tentaria incriminá-lo por um conjunto de ações prévias que culminaram no 8 de janeiro. Isso porque até o momento não se tem notícia de que Bolsonaro tenha instigado diretamente os apoiadores a invadir e depredar os prédios.

Gustavo Badaró: O que provavelmente vão tentar fazer: quase que como pelo conjunto da obra. Eles vão pegar o Bolsonaro não pelo 8 de janeiro propriamente dito, mas dizer ‘Olha, o Bolsonaro um ano e meio atrás, já estava dizendo que não aceitaria o resultado das eleições se a urna não tivesse papel. Olha, o Bolsonaro no 7 de setembro de um ano antes, ele fez um desfile militar. O Bolsonaro se reuniu com embaixadores estrangeiros próximo da eleição para questionar o resultado das urnas’.

Ana Luiza Albuquerque: Aí dependeria da interpretação da maioria do Supremo –se houver denúncia contra o ex-presidente, os ministros vão ter que decidir se a conduta dele ao longo do tempo poderia configurar algum crime, como abolição violenta do Estado de Direito ou golpe de Estado.

Gustavo Badaró: Aquele que quer punir, ele vai ver nesse monte de coisas que eu falei, algo que ele vai dizer: isso já é concretamente suficiente para ligá-lo ao 8 de janeiro. Quem não vai querer puni-lo vai dizer: ‘Ele estava contestando o resultado das urnas, mas olha, não se encontrou ele pagando diretamente para alguém ficar no acampamento. O Bolsonaro não pediu para alguma empresa de ônibus transportar as pessoas lá para o 8 de janeiro. O Bolsonaro não fez nenhuma manifestação: invada o Supremo, invada o Palácio do Planalto, invada a Câmara dos Deputados’. O problema vai ser menos probatório, isso é, como os fatos se passaram, e mais um problema hermenêutico, de interpretação dos crimes.

Ana Luiza Albuquerque: E se o Bolsonaro fosse condenado pelos mesmos crimes atribuídos aos apoiadores dele, ele provavelmente cumpriria a pena em regime fechado.

Gustavo Badaró: Se você somar, só vendo aqui abolição violenta de quatro a oito anos, golpe de estado de quatro a 12 anos, organização criminosa de três a oito anos, só somando isso daí de pena mínima nós já estamos falando em 11 anos. Com mais de oito anos, mesmo sendo primário, começa a cumprir em regime fechado.

Ana Luiza Albuquerque: Como a gente falou antes no episódio, Bolsonaro também é alvo da investigação da PF que apura a suposta tentativa de golpe envolvendo a elaboração de minutas que previam a decretação de um estado de sítio. Essas investigações e as do 8 de janeiro se entrelaçam em muitos momentos.

Nessa semana, a Polícia Federal indiciou o ex-presidente, suspeito de ter participado de um esquema pra inserir dados falsos no cartão de vacinação dele. Mauro Cid teria viabilizado o registro de duas doses da vacina da Pfizer no sistema do Ministério da Saúde, ainda que Bolsonaro não tenha sido imunizado.

O ex-presidente ainda é investigado em outros inquéritos no Supremo, como o das fake news e o das milícias digitais. A Polícia Federal também apura se Bolsonaro usou a estrutura do governo pra desviar joias e presentes de alto valor oferecidos a ele por autoridades estrangeiras.

Eleito em 2018 com 55 milhões de votos, hoje Bolsonaro é um ex-presidente investigado e inelegível. As tentativas dele de se segurar ao poder não deram certo. Mas ele ainda está aí, mobilizando apoiadores, apadrinhando candidatos, tendo uma presença relevante na política e com os filhos exercendo mandato no Legislativo.

No próximo episódio eu te conto a história de outro líder latino-americano que se elegeu na onda anticorrupção, como um candidato antissistema. Ele, aliás, acabou de se reeleger e está no auge da popularidade –inclusive entre bolsonaristas, que batem palma para as políticas dele e dizem que Bolsonaro deveria ter agido contra o crime organizado com a mesma linha-dura.

TikToker: Tropa, eu não sei vocês. Mas eu tô apaixonado por esse cara. Nayib Bukele é o presidente mais popular das Américas.

Ana Luiza Albuquerque: Eu sou Ana Luiza Albuquerque, responsável pela apresentação, roteiro, produção e reportagem do Autoritários.

A edição de som é do Raphael Concli. A coordenação é da Magê Flores e do Daniel Castro, a produção no roteiro é do Victor Lacombe e a supervisão dele é do Gustavo Simon. A identidade visual é da Catarina Pignato.

Esse episódio usou áudios da Jovem Pan, TV Globo, G1, CNN Brasil, UOL, Globonews, Canal do YouTube do Nikolas Ferreira, TV Cultura, Congresso em Foco, TV Câmara, Band, Rádio BandNews FM, Rádio Itatiaia e TV Senado.

Até semana que vem.

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